sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

SAUDADES DE LALAU


Relendo as letras dos sambas-enredo deste ano não resiti e republico um artigo que escrevi para o Suplemento Cultural durante as comemorações dos 500 anos de Brasil. Lá vai ...
Carnaval 500 anos
Ah , se Sérgio Porto estivesse aqui !



Um dia Sérgio Porto , sob seu heterônimo de Stanislau Ponte Preta , acordou assustado com as agruras com que um compositor “do morro” estaria sujeito ao ser obrigado a compor um samba de enredo para Escolas de Samba , sobre um tema que tinha pouco ou nenhum conhecimento . Já naqueles idos anos 60/70 os “carnavalescos “ enveredavam por caminhos e mares nunca “dantes” navegados.
Surgiu então uma pérola musical chamada “Samba do Crioulo Doido” uma sátira a essa ridícula situação que nos trazia em meio a confusões históricas uma conclusão de que em sambas como esse é muito fácil explicar-se que “a Leopoldina virou trem/ e Dom Pedro é uma estação também” .

Pois bem , nestas comemorações de 500 anos de Brasil , sambistas , ligas e políticos de plantão resolveram cantar um gigantesco “parabéns pra você” na avenida , e como dizia o saudoso Lalau , “o bode que deu vou te contar” .

Do Oiapoque ao Chuí , onde se pode ouvir um baticum , tropeçamos com o “quinhentismos esquindotório” . De Alceu Valença vestido de Cabral à muita índia (até loira) com suas vergonhas tão saradinhas escondidas em tapa sexo os 500 anos foi um grande Carnaval. Para não ficarmos nos perdendo por esses Brasís , nos atemos aos dois maiores desfiles de Escolas de Samba que ocorreram , os do Rio e o de São Paulo , que pudemos acompanhar graças ao não encavalamento dos eventos tão bem “planejado” pela mídia televisiva.

Honra seja feita , os carnavalescos que receberam os pacotes fechados com seus temas tiveram trabalho para adaptar seus delírios. Muitos reclamaram do período que lhes foi entregue , mas todos deram conta do recado, pena que nosso grande espetáculo que já foi ovacionado como a “maior ópera popular do mundo” não distribua libreto para entendermos o que é aquela coisa amarelo brilhante , com um penacho cor de rosa que pode ser um queijo de minas com um litro de leite, mas não sei onde se encaixaria nesse tema . Pena que o roteiro que é entregue , explicando ala a ala das escolas, para a imprensa , mal seja lido no ar , ou que os diretores de tv dignem-se a ao menos escutar o que os, como direi, locutores das tevês estão narrando para colocarem no ar as imagens referentes ao texto.

Também não estamos exigindo que todo um povo , ou pior , os turistas entendam a história do Brasil em pleno Carnaval , mas também não devíamos colaborar para confundir as coisas um pouco mais. Talvez Gilberto Freyre ou Darcy Ribeiro pudessem discorrer mais sobre essa carnavalização de nossa cultura , mas transformar livros em confete já é demais.

O problema está no samba , lembram uns , invocando nosso patrono Sérgio Porto. O problema está na origem afirmam outros...que fique claro , é que essa origem vem do DIP , Departamento de Imprensa e Propaganda , órgão verdadeiramente de censura que criado durante o Estado Novo , ditadura de Getulio Vargas exigiu que as agremiações carnavalescas tivessem como tema , fatos históricos e patriotadas de praxe.

Patriotada é o que não faltou (também ninguém vai ofender o aniversariante) , mas o pior foi o erro histórico ... o mais lamentável de todos talvez ocorra justamente no período do Estado Novo. A Portela entrou na avenida cantando que “Aclamado pelo povo/, o Estado Novo/Getulio Vargas anunciou” , e como todos sabemos o Estado Novo foi implantado pelo ditador Vargas em 1937 graças a um Golpe de Estado, sem qualquer participação popular. Getulio só foi festejado, quando aí sim , verdadeiramente eleito pelo povo. E para livrar um pouco a barra , logo à frente nos trás a pérola “a despeito da censura/Não existe mal sem cura/Viva o trabalhador ôôô” . Transmitindo pela tv , o jornalista Pedro Bial acudiu-se desse estribilho para desmistificar um pouco, tanto oba-oba ao período getulista . Na tv a cobertura morna , apoiada nas “celebrities” também teve momentos de puro contra-senso aos 500 anos “comemorados”. Ao ver uma alegoria onde damas da corte eram transportadas em liteiras , a repórter Gloria Maria , de origem afro-brasileira , logo soltou um ...”deve ser uma delícia andar nessas cadeirinhas” . Prontamente acudida pelo parceiro Bial...”para quem está dentro não é Glória”. Mas era carnaval e carro abre-alas com antílope , que virou bode , teve a desculpa de ser antílope , porque o bode é do mal , é de Exu , e não poderia vir de abre alas . Mal sabem eles que antes dos “Filhos de Gandhi” saírem em Salvador, primeiro pedem licença para Exu , ou então o desfile acaba em confusão .

Cultura afro-brasileira à parte, mais uma vez foi a Igreja Católica que tentou desestabilizar um pouco mais os enredos. Proibiu Nossas Senhoras, padres de batina , cruzes, colocou advogados de plantão com mandatos na mão. Transformou uma Pietá branca com índio morto ao colo em...uma Pietá índia com um índio morto no colo. Não conseguiu transformar as primeiras missas, em atos ecumênicos e meninos... juro que vi um São Sebastião, que nem santo era pois era mulher, e daquelas de capa de revistas semanais.

Mas o Carnaval 500 anos teve mais e em uma rápida enquete nos barracões e ensaios das escolas paulistas o jornal O Estado de São Paulo pode comprovar que o samba histórico mais confundia que esclarecia . Sambas que falavam do período de 1770 a 1808 eram tratados como “O samba fala do Brasil de antigamente, deve ser os anos 60 ou 70 “. Ou ainda que era Pedro Alvares Cabral o tal herói inconfidente do samba da Escola Gaviões da Fiel .

Muito embora alguns historiadores defendam a licença poética dos compositores para a criação de um samba enredo é preciso atentar para alguns momentos imperdoáveis , como o de insistir que Cabral descobriu o Brasil por acidente e calmaria. A Unidos da Tijuca cantava “Folheando a história/No tenebroso mar da imaginação/Lembro que a viagem foi traçada/Calmaria fez mudar a direção”. O bom selvagem que mora em uma terra idílica e que logo confraterniza-se com o invasor é então quase que tema recorrente em todas as escolas , seja na letra do samba , seja na construção das alas . Esse ser puro já foi muito bem estudado no livro “O Brasil do Samba-Enredo” , onde a psicóloga Monique Augras analisa as letras desses sambas no período de 1948 a 1975 . As letras segundo ela trazem o índio como um elemento imaculado, sempre como bom selvagem que vivia em harmonia com a natureza . Na Beija-Flôr ele é “’Índios guerreiros de pele dourada/E alma purificada/Habitavam este solo colossal”, ou ainda em Vila Isabel “Vi lá em harmonia com a floresta/Em canto, dança, caça e pesca/respeito à criação de um Deus maior” ou pior na Viradouro , onde a construção da letra permite mais de uma interpretação “Bordunas, tacapes e ajarés/Na dança do índio põe a seus pés/Mas nascem idéias diversas, são mentes perversas/Não foi essa a lição dos pajés”.

Em São Paulo , a Tom Maior nos diz “O índio com sua pureza acredita e dá valor/Ao homem branco colonizador”. É preciso sempre atentar que essas letras colocam sempre como emitente e recipiente o homem branco, consumidor do produto Carnaval.

O passado recente ficou para poucas escolas , mesmo assim no quesito irreverência e critica social mesmo no embroglio comemorativo São Paulo destacou-se. Muitos heróis ficaram de fora, uns no Rio , outros em São Paulo mas para compensar ficamos íntimos de Juscelino que virou Nonô e Assis Chateaubriand que virou “Chateau” . Se não tivemos Domitila , Fernão Dias, se chamamos Dona Leopoldina de princesa-menina e explicamos que Padim Ciço politiza Lampeão , nada mais justo que colocarmos destaques em pau-de-arara e juntarmos PC Farias , Rosane e Collor em um mesmo avião e cantarmos "Eu elegi um presidente/ collorido e diferente, me dei mal”( Vai-Vai) .

No meio da história com tantos grandes vultos nada mais justo que reverenciar Ayrton Senna e Pelé , considerados heróis do povo . Mas a Acadêmicos do Tucuruvi foi mais além e “tascou” Elymar Santos. Sim aquele que cantou Cidade Maravilhosa e o Hino Nacional na abertura dos desfiles no Rio de Janeiro foi homenageado nos 500 anos em São Paulo com os versos “O Elymar com ousadia/Tudo vendia para alugar o Canecão” . O Tema da escola era “Noventa milhões em ação! Na tristeza e na felicidade” e que abrangia o período militar de 1964 a 1984 . Esqueceram de dizer que Elymar foi um ótimo Che Guevara na ópera-rock Evita.

Mas é carnaval que promove essas intimidades entre os extremos, e tempera com ar de democracia o chamado desfile popular . No carnaval o inusitado sempre pode acontecer e muito embora falte visão crítica na grande maioria das escolas o samba acaba muitas vezes resgatando personagens históricos esquecidos. Foi assim com Xica da Silva e agora com Dom Obá II – o Rei dos Esfarrapados, Príncipe do Povo que a Mangueira nos trouxe , apesar do delírio dos nossos sambistas que provocariam mais uma vez Sérgio Porto com “Vi no Morro da Mangueira/sambar de porta-bandeira/A princesa Isabel “ .

Mas se no morro da Mangueira pode, também pode no carnaval da Bahia . No camarote de Flora Gil a presença do Rei da Suécia. No calor do baticum , a repórter Astrid Fontenelle , não se faz de rogada e no ar dirige-se a ele da seguinte forma : “Venha cá , meu rei...”

O engraçado de tudo é que os erros e desatinos foram tantos que serão precisos outros 500 anos para destrinchar-se tamanho desenredo . Até nas coisas mais locais , como no morno desfile das pleiteantes ao grupo especial em São Paulo , a Escola de Samba Unidos de São Lucas homenageando a Cidade de São Caetano do Sul , integrante do parque industrial automobilístico brasileiro , tacou um Fusca sobre um carro alegórico . Só que a fabrica de automóveis que fica em São Caetano é a GM.

Nos resta o consolo , no varrer do confete e serpentina ver que os maracatús marcaram presença , que o Galo levou dois milhões às ruas ,que o rock “Ana Julia” dos “Los Hermanos” foi a música mais executada nesse carnaval e que os diligentes locutores oficiais da passarela do samba fizeram questão de nas suas versões tri-lingues de apresentação das escolas e seus enredos traduzir o nome das referidas agremiações transformando Vai-Vai em Go-Go ,e Nenê (apelido do fundador e nome oficial da Escola) de Vila Matilde em Baby from Matilde Village . Evoé Momo.

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